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Lei da Pureza Alemã não faz cerveja melhor, mas precisa ser conhecida

Juliana Simon

23/04/2021 04h00

Chope recém tirado em competição de pequenas cervejarias de Potsdam, Alemanha (Photo by Ralf Hirschberger/picture alliance via Getty Images)

Hoje é aniversário da Lei da Pureza Alemã e é difícil que você, cervejeiro, não tenha ouvido dela alguma vez na vida. Não é sem polêmica, porém, que a "Reinheitsgebot" circula entre produtores, bebedores e até leigos.

Prova recente disso foram os acalorados debates gerados graças a uma confusão da jornalista Cora Rónai em relação ao termo "pureza" unido ao gentílico "alemã" e reações bastante indelicadas de muito sabichão cervejeiro.

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Não é o momento para concordar ou não com Cora (inclusive compreendo totalmente a estranheza ao termo para quem não está familiarizado com a história da cerveja), mas também não há oportunidade melhor para falar de um episódio tão importante para a bebida tema deste blog com um olhar nada raivoso ou inocente.

Mesmo entre os "beergeeks", há muita lenda sobre a bendita lei. Entre os neófitos, é fácil cair na tentação de alardear por aí que é a regra que estabeleceu o que há de melhor, de mais puro, de mais original na cerveja.

Mas senta que lá vem história…

A Lei da Pureza Alemã original, em exibição para comemoração de seus 500 anos

A Lei da Pureza Alemã nasceu em 23 de abril de 1516, estabelecida pelo duque Guilherme IV, que determinava, entre muitas outras coisas, que a produção de cerveja na Bavária só seria permitida com utilização de cevada, água e lúpulo – a levedura ainda não era conhecida na época e a fermentação era considerada um ato divino.

Com essa regra, ficavam de fora ingredientes como: trigo, arroz, milho, diversas ervas e outros adjuntos, como ervas e frutas.

Se organizar direitinho, todo mundo bebe melhor

Para que criar regras sobre uma coisa tão bonita como a cerveja? Muitos motivos – nem todos pelo bem da cerveja ou cervejeiros.

Fora dos mosteiros, onde a qualidade cervejeira já decolava há séculos, as produções caseiras ou de tabernas, passadas de geração para geração, não tinham qualquer compromisso com a qualidade, ou padrão de ingredientes.

Na Alemanha, por exemplo, se usava absinto, babosa e outros mil recursos para aumentar a sensação alcoólica e o corpo da bebida. As adulterações das fórmulas eram frequentes. Tudo isso gerava uma preocupação para os governos e consumidores, claro.

As punições para produção de "má cerveja" eram infinitas. Entre elas, ser jogado no depósito de esterco da cidade, como em Danzig, na Alemanha.

Foi com o estabelecimento da Lei de Pureza, que este cenário começou a mudar, se modernizar e criar cada vez mais medidas para uma bebida mais "pura" e de qualidade.

Além da restrição de ingredientes, em 1553, a Baviera passou a proibir cerveja no verão, já que esta estragava mais facilmente a maiores temperaturas – regra que já funcionava na cidade de Estrasburgo desde o século XV. Esta determinação caiu somente em 1850, com a criação de estrutura para "gelar" as cervejas de verão.

Mestres cervejeiros da alemã Flensburg exibem os ingredientes permitidos pela Lei da Pureza (Crédito: Christian Charisius/picture alliance via Getty Images)

Money, money, money

Ainda que muitos confundam a lei com corações inocentes pelo bem da cerveja, pureza não era o principal interesse das novas regras. Aliás, ao que consta, somente 9,85% do documento original da lei trata de ingredientes de "renheit" (pureza em alemão).

Com o advento de mudanças sociais (Reforma Protestante), políticas (com ascensão da burguesia) e o consumo alto de bebidas alcoólicas – que, até então, eram consideradas alimento – a regulação da produção cervejeira passou a ser de alto interesse dos poderosos, já que seria esta uma área propícia para a cobrança de impostos.

A obrigatoriedade da cevada tinha explicação: havia a necessidade de conter a demanda de trigo, que, utilizado até então amplamente em cervejas, tinha seu preço inflacionado e encarecia outro produto muito popular: o pão.

As cervejas de trigo não sumiram, mas só eram produzidas por alguns poucos cervejeiros, com uma concessão de produção pelo duque.

Também houve incentivo ao "ouro verde". Ingrediente agora obrigatório, o lúpulo teve seu cultivo bombado a partir da lei, com destaque para o Hallertau que se tornou abundante na região de Munique – e que embeleza a paisagem até hoje.

Cópia da Reinheitsgebot, Lei da Pureza Alemã (Crédito: Getty Images)

Poder por todos os lados

Não por coincidência, na mesma época, Martinho Lutero e os movimentos protestantes em geral animavam atos públicos contra o monopólio da Igreja Católica.

No universo cervejeiro, isto importava e era uma realidade não só em termos de produção, com mosteiros cervejeiros espalhados pela Europa, como de insumo, com o domínio católico sobre os impostos do gruit – uma mistura de ervas usadas para saborizar e conservar as cervejas antes do lúpulo.

O pretexto religioso para abandonar o gruit aqui eram os supostos efeitos psicotrópicos e "bruxaria" incentivada pelo blend de plantinhas desconhecidas. Então tá.

A importância política da cerveja não surgiu na Lei da Pureza Alemã, que não foi a primeira a legislar sobre a bebida e seu consumo. Exemplos disso:

  • Na antiguidade, o código Hamurabi classificou as cervejas da Babilônia.
  • Em 1268, o rei Luis IX da França estabeleceu que a cerveja deveria ser feita somente de malte e lúpulo.
  • Em 1514, uma lei estabeleceu que, em Paris, um cervejeiro deveria ter formação de pelo menos 3 anos antes de abrir seu negócio.

No próprio território Bávaro, a mão da lei já não era novidade entre os cervejeiros.

  • Em 1156, um decreto na cidade de Augsburgo determinava que a cerveja de má qualidade fosse destruída ou distribuída aos pobres de graça.
  • Em 1363, foram nomeados 12 inspetores de cerveja em Munique.
  • Em 1420, foi determinado que toda cerveja da cidade deveria ser maturada por pelo menos oito dias antes de ser servida.
  • Em 1447, Munique já estabelecia o uso de cevada, lúpulo e água nas cervejas produzidas na cidade. Quarenta anos depois, esta lei foi corroborada em juramento público feito pelos cervejeiros sob mando de Alberto IV da Baviera.

Em 1516, a Reinheitsgebot surge como marco não só por sua rigidez, como por ter se espalhado por todo o território alemão anos depois.

A lei se expandiu primeiro para todo o império, em 1906, e, sob a República de Weimar, em 1919, passou a fazer parte da lei de impostos alemã. O Terceiro Reich a adotou integralmente, mas Hitler e sua ideologia genocida de "pureza" não teve nada com o batismo da lei, que até 4 de março de 1918 era chamada de "Surrogatverbot" (proibição de adjuntos, simplesmente).

Além disso, ela AINDA EXISTE, segue bastante popular entre os cervejeiros locais e entusiastas do "bate do peito e grita Reinheitsgebot".

Hoje, porém, a Lei da Pureza tem duas versões: a da Bavária, que só permite a utilização de malte de cevada, lúpulo, água e levedura (adicionada no século 17); e a da Alemanha, que permite adição de açúcar de cana, de beterraba, amido modificado, açúcar invertido e corante caramelo.

As cervejas produzidas fora das regras voltadas para o mercado interno não podem ser chamadas de… cerveja – mas "bebidas à base de malte". Já as importadas para a Alemanha e as exportadas para outros países que não sigam as regras da Reinheisenbot podem ser denominadas como cerveja.

Dá para gostar da lei?

Apesar da dura realidade do jogo de interesses, sim, a Reinheitsgebot deve ser celebrada entre os cervejeiros. Afinal, foi ela que propiciou a criação das cervejas Lager.

A primeira delas, o estilo Dunkel, predominante na época e na região em que a Lei da Pureza surgiu.

Depois, as Marzen. Com a proibição da produção entre abril e setembro, resta o clima mais frio de outubro a março para a criação das cervejas e somente os microorganismos de baixa fermentação são capazes de fermentar o mosto.

Na correria de fazer cerveja "a tempo", a produção acelerava em março – daí o nome do estilo – e era armazenada em adegas, túneis e cavernas. Armazenar em alemão é "lagern". Daí para "lager" é um "n" de distância.

Comemoração dos 500 anos da Lei da Pureza Alemã em Brandemburgo, em 2016 (Crédito: Getty Images)

Tchau, mito

A Lei da Pureza é selo da "melhor cerveja"?

Não. Fosse essa a verdade, o que dizer das deliciosas cervejas belgas, conhecidas por seus adjuntos?

A Lei da Pureza mata a criatividade cervejeira?

Também não. Fosse assim, não teríamos uma imensa variedade de sabores na escola alemã, dominada por lagers de amarelo palha a preto, de ABVs levíssimos a bombas alcoólicas, de características tão marcantes que são verdadeiros símbolos regionais.

Nessa caminhada de mais de 500 anos, os cervejeiros que seguem a lei rebolam para não sair da linha com muito conhecimento e técnica.

Um exemplo que adoro é o da Berliner Weisse, uma ácida alemã purinha como a lei: para ela, se mantém a fermentação lática e usa-se o líquido resultante para fazer reajustes no PH sem infringir a lei. Importante lembrar que no caso deste estilo, os xaropes de aspérula e framboesa são adicionados somente no serviço da cerveja. Do contrário, não se encaixaria na Lei da Pureza Alemã.

Num universo de tantas nuances, como a cerveja, nenhuma regra é capaz de ditar o que vai agradar o paladar. Conhecer a história do que cerca nosso interesses, no entanto, é essencial para passarmos do campo da "liçãozinha" para a transmissão de conhecimento.

Ein prosit!

Onde procurar mais informações

Para escrever este texto, usei quatro referências bibliográficas de cabeceira:

Guia Oxford da Cerveja. Garrett Oliver. 2020. Editora Blutcher.
Larousse da Cerveja, Ronaldo Morado. 2017. Editora Alaúde.
A Mesa do Mestre Cervejeiro, Garrett Oliver. 2012. Editora Senac.
Apostila do Curso de Especialização em Estilos, do Instituto da Cerveja. 2016

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Sobre a autora

Juliana Simon é jornalista do UOL, sommelière de cervejas, mestre em estilos e especialista em harmonização pelo Instituto da Cerveja Brasil.

Sobre o blog

O Siga o Copo é espaço para dicas, novidades e reportagens para quem já adora ou quer saber mais sobre o universo cervejeiro e de mais bebidas.