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Ícone, Garrett Oliver defende cerveja "de Instagram" e age por diversidade

Juliana Simon

10/06/2021 04h00

Garrett Oliver, um dos cervejeiros mais celebrados do mundo (Crédito: Divulgação)

Pergunte a qualquer apaixonado por cerveja: "Quem você gostaria de ser?". Se na lista não despontar "Garrett Oliver", desconfie. Afinal, quem não queria ser, talvez, a pessoa mais cool do planeta?

Para começar, o homem comanda as panelas de uma das cervejarias mais icônicas do planeta – a nova-iorquina Brooklyn Brewery -, responsável não só por receitas que já são clássicas, como por um tremendo papel na cultura cervejeira desde os anos 80 (algo que este vídeo explica lindamente).

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Primeiro cervejeiro a ser premiado com o "Oscar da gastronomia" norte-americana, Garrett exibe um currículo tão vasto, quanto interessante. Descobriu a cerveja artesanal em Londres, é responsável por livros de cabeceira de qualquer cervejeiro – como "A Cozinha do Mestre-Cervejeiro" – , teve seu "domingo normal" reportado no The New York Times… sim, todos queremos ser o Garrett.

Na impossibilidade de conhecer o real mito pessoalmente – que viria ao Brasil em 2020. O eterno 2020 – o Siga o Copo bateu um papo com Garrett por email e (spoiler!) ele fala de tudo e mais um pouco.

O cervejeiro

(Crédito: Divulgação)

Para muitos sabichões da cerveja artesanal, a primeira experiência de Garrett com cerveja além das mainstream é descrita na maior simplicidade. "Eu estava bebendo ótima cerveja tradicional na Europa há quase 40 anos, e foram as mais saborosas que eu bebi", relembra.

Logo depois disso, a cena americana cresceu, nos anos 80, e cervejeiros caseiros – como Oliver – começaram a levar suas produções para o mercado.

Com essa experiência, o cervejeiro revela que não é só uma questão de talento e de passaporte muito carimbado. Para ele, o bom degustador de cervejas tem uma boa biblioteca sensorial e precisa estar disposto a ralar muito. "Sinto que ser um cervejeiro moderno tem muito a ver com ser um chef hoje em dia", opina.

Já para quem quer fazer cerveja em casa, ele também recomenda correr atrás de conhecimento científico e técnico básico para entender o processo de brassagem, além de boa memória sensorial, habilidades de degustação, boas ideias e senso estético.

Equilíbrio, estrutura e elegância são as chaves para uma ótima cerveja", crava.

Se você, leitor, só quer mesmo começar a matar a curiosidade sobre cervejas, Garrett também tem boas dicas, como começar a pesquisar online e nos livros (os dele inclusos, claro) e fazer degustação entre amigos – neste momento, online ;).

Não sabe por onde começar? "Em seis ou oito estilos clássicos você pode começar a ter uma ideia de quão amplo o mundo da cerveja pode ser", indica.

Harmonização nota MIL

Em sua carreira, Garrett lembra de dezenas de harmonizações perfeitas – e algumas que garante que vão funcionar todas as vezes.

"Mas teve uma vez em Amsterdã, no começo dos anos 90, quando eu pedi um salmão com dill e limão e foi servido com uma witbier. Aquele almoço abriu meus olhos e eu vi que um novo mundo culinário era possível", diz, saudoso.

As cervejas

Acredite nos clássicos – e no Instagram

Quando se trata de "pensar cerveja", Garrett divide espaço em um Olimpo de peso, ao lado de Randy Mosher (já entrevistado por aqui) e Michael Jackson (sempre bom explicar: o estudioso de bebidas, não o cantor). Ao mesmo tempo em que esbanja conhecimento e respeito pelas escolas cervejas, pela tradição de Alemanha, Reino Unido, Bélgica e EUA, também não rejeita as invencionices cervejeiras.

A Brooklyn, por exemplo, nasceu com clássicos e ainda conta com estes estilos em seu portfólio, especialmente Pilsner. Para ele, cervejeiros sérios têm grande respeito pela Pilsner verdadeira, porque é difícil de produzir e, como outros clássicos, cria uma expectativa do consumidor.

"É como cozinha clássica. Você pode fazer um feijão ensopado e apenas dizer 'esse é meu novo feijão com carne, gostou?'. Mas se você o nomeia 'feijoada'… agora as pessoas vão comparar sua feijoada com toda outra que já provaram. Isso é o que faz os clássicos mais desafiadores", diz Garrett – que já veio ao Brasil algumas vezes e sabe bem do que fala.

Sobre os novos estilos, o cervejeiro não se esquiva de polêmicas, e, em 2017, chegou a afirmar em uma entrevista
que as New England IPAs eram uma fase, algo para o Instagram.

 

A resistência não durou muito tempo, e, pouco depois, as Hazy IPA chegaram aos taprooms da Brooklyn e, em 2020, ao mercado. Garrett reconhece: elas chegaram para ficar.

Diria que essa versão da IPA tem durado mais do que eu esperava, então minha previsão estava errada. As IPAs mais tradicionais ainda vendem mais, mas as pessoas falam mais das hazy/juicy IPA", reconhece.

Ainda assim, crava que é sim o primeiro estilo baseado na "moda das redes sociais". "Mas não há nada de errado com isso – eu amo o Instagram!", afirma e indica que ainda as versões doces, com lactose, ainda não "descem", mas que já adora a Pulp Art IPA.

Normalizem as "zero"

Assim como muitas cervejarias consagradas, a Brooklyn também lançou cervejas sem álcool – a Special Effects – e, segundo Garrett, a pedido do mercado europeu.

"Nos Estados Unidos, as cervejas 'zero' têm um problema de imagem, mas não na Europa, onde é vista como uma bebida perfeitamente normal para uma ocasião específica", relembra. "Bebo a Special Effects IPA quase todos os dias no almoço!". Fica a dica.

Cerveja nunca será vinho (ainda bem)

Cerveja ou vinho ou drinques? Quem acompanha o Garrett, sabe que ele gosta e prova de tudo e rejeita a competição entre as bebidas. Ainda assim, reconhece que o mercado tem um claro "apego" ao fermentado de uva, ainda que "a cerveja seja claramente superior ao vinho em uma mesa de jantar", como enfatiza.

"Há muitas razões para isso, especialmente o valor mais alto dos vinhos, o que dá uma imagem de "alta classe" e desejável. A cerveja nunca vai alcançar a imagem especial dos vinhos, especialmente nos restaurantes, e o vinho nunca vai conseguir as habilidades culinárias da cerveja. Ainda assim, hoje a maioria dos restaurantes tem pelo menos um cardápio pequeno de cervejas 'sérias', o que é um grande progresso", declara.

(Crédito: Divulgação)

O mercado

Falando de futuro, Garrett é um otimista – até quando se trata de Brasil, olha só.

Para ele, o público das boas cervejas só tende a crescer. "A cerveja artesanal hoje é parte do mainstream e anda ao lado de outras tendências na cultura gastronômica, como o 'vinho natural' e bons queijos", crava.

Na bola de cristal, o cervejeiro vê que as IPAs vão continuar a crescer e mudar, as sour ficarão mais mainstream, teremos mais cervejas sem-álcool e menos alcoólicas e mais experimentações em fermentação natural e ingredientes inusitados.

Por aqui, o mestre vê os brasileiros como cervejeiros mais promissores. "As cervejarias brasileiras fazem um ótimo trabalho levando ótimos produtos naturais, especialmente frutas, para ótimas cervejas novas". A Brooklyn, inclusive, já aproveitou esse potencial em 2013, com a elaboração da "Saison de Caipira" (com caldo de cana) com a então independente Wäls, de Belo Horizonte.

Missão anti-racista

Aos 58 anos de idade, nascido em Nova York e negro, Garrett Oliver não se esquiva quando o assunto é racismo. E relembra inúmeras vezes em que jornalistas surgiam para entrevistar "Garrett Oliver o mestre-cervejeiro", passavam por ele e iam cumprimentar seu assistente Kurt, um homem branco.

Eles aparentemente esperavam o estereótipo de um homem alemão gordo, ainda que os africanos tenham inventado a produção de cerveja e que produzir a bebida seja central para cada sociedade africana. Muitos acreditam que a cerveja é 'europeia' – não é", diz.

De cinco anos pra cá, Garrett vê mudanças, com mais cervejeiros negros se destacando nos EUA. Mas também calcula que negros provavelmente representam menos de 1% da mão de obra cervejeira, ainda que representem 13% da população americana. "Então ainda temos um longo caminho a seguir", afirma.

(Crédito: Divulgação)

Sobre casos recentes de racismo e misoginia no Brasil, Garrett diz não estar surpreso – apesar de se declarar para nós ("Brasileiros são genuinamente as pessoas mais legais do mundo").

"Mas, como nos EUA, tem uma horrível história de escravidão e racismo que as pessoas nunca enfrentaram de verdade. Já ouvi de um escritor que disse aos cervejeiros negros brasileiros que eles 'deviam ser como Garrett – você nunca ouve ele reclamando de racismo'. Eu rejeito isso completamente", declara.

Diante de várias cervejarias menores e mais novas que fazem da diversidade e da inclusão uma parte central da sua identidade, Garrett acredita que se você é negro e quer ser cervejeiro, seja nos EUA ou no Brasil, você precisa do apoio de pessoas decentes.

Em 1989, o cervejeiro britânico Mark Witty me contratou na Manhattan Brewing Company. em 1994, Steve Hindy e Tom Potter me contrataram na Brooklyn Brewery. Naquela época, você não via cervejeiros negros nos Estados Unidos, então me contratar foi um movimento radical", relembra.

O cervejeiro pede o seguinte exercício: imagine, se você é uma brasileira branca, que todos os bares estivessem com 100% de homens negros. Nenhum branco, quase sem mulheres. Você se sentiria confortável indo lá? Não?

"Então agora você sabe como o resto de nós nos sentimos frequentemente. Tudo fica melhor quando trabalhamos juntos. É muito simples", conclui.

Ação por inclusão

Em 2019, surgia a ideia da The Michael Jackson Foundation for Brewing and Distilling, uma instituição liderada por Garrett, que promove bolsas de estudo para negros, asiáticos e indígenas. Com as movimentações sociais de 2020, após o assassinato de George Floyd por policiais, os planos de lançamento tiveram que correr.

Segundo Garrett, em menos de um ano, foram levantados mais de US$ 300 mil em bolsas de estudo, o que possibilitou o anúncio de cinco bolsistas em cervejarias.

Apesar do ânimo e do sucesso da iniciativa em plena pandemia, Garrett conta que há muito trabalho a ser feito – das redes sociais à construção de uma base de empregos e oportunidades de treinamento pró-diversidade.

Otimismo contra pandemia

(Crédito: Divulgação)

De São Paulo a Nova York, não tem ninguém no mundo que não tenha sido minimamente atingido pela pandemia. Com Garrett Oliver e sua Brooklyn, não foi diferente.

Ainda assim, ele acredita que a cena cervejeira vai ser diferente por um tempo, mas não para sempre.

Cervejarias que vendem muito em supermercados têm se saído muito melhor que as que só podem contar com seus taprooms, mas as pessoas são fortes e ainda abrem novas cervejarias todos os dias. É maravilhoso. Então acredito que voltaremos", acredita.

Para quem acompanha o elegante cervejeiro pelo Instagram (recomendadíssimo), o home office regado a boa comida e ótima bebida é um bálsamo. E, como nós, os isolados, o passaporte de Garrett sente saudades:

"Claro, não estou viajando para lugar nenhum. Então tem sido um ano estranho. Mas estou 100% vacinado e espero voltar ao Brasil logo!".

Te esperamos assim que tivermos a mesma oportunidade de vacina no braço, menos negacionismo e mais empatia, Garrett.

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Sobre a autora

Juliana Simon é jornalista do UOL, sommelière de cervejas, mestre em estilos e especialista em harmonização pelo Instituto da Cerveja Brasil.

Sobre o blog

O Siga o Copo é espaço para dicas, novidades e reportagens para quem já adora ou quer saber mais sobre o universo cervejeiro e de mais bebidas.