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Para cada chatice ou ofensa machista que ouvi, uma cerveja incrível bebi

Juliana Simon

07/03/2021 04h00

(Crédito: iStock)

Não sou a pioneira, nem a mais antiga do Brasil, nem a mais famosa, nem a mais conhecedora, mas, sim, sou uma mulher da cerveja. E em uns quase vinte anos de consumo, seis anos de estudo, e quase quatro anos de blog, posso dizer que foram incontáveis as porcarias machistas que cruzaram meu caminho.

Se quando era mais jovem a primeira reação era bater boca e levantar o dedo do meio, hoje, aos quase 35 anos, alterno entre crises da famigerada síndrome de impostora (será que deveria estar aqui?) e a certeza de que, sim, esse é o melhor lugar, como é o de tantas mulheres que cravaram os dois pés no mundo cervejeiro.

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Num exercício quase catártico, puxei na memória as maiores idiotices que ouvi, e, para cada uma delas, escolhi uma cerveja com significado muito maior, e que tenha alguma ligação com a tal "brincadeirinha", ofensa ou violência.

No Dia Internacional da Mulher, para cada m*rda, uma boa cerveja.

(Crédito: Pexels)

"Buquê de macho"

Recebi no grupo de whatsapp da minha recém-iniciada turma de sommeliers essa legenda para uma foto de um balde lotado de cervejas. Não lembro quem era o sujeito, mas se estiver lendo, me fala se sua cabeça mudou ao ver, um semestre depois, uma mulher ser escolhida a melhor da classe (aham, eu).

Para você, uma Brooklyn Intensified Coffee Porter, que foi o prêmio entregue pelas mãos de Kathia Zanatta (beijo, Kathia) na ocasião.

"Você aguenta mais amargo que eu" 

Nenhum problema na constatação – inclusive não é nem uma questão de tolerância, mas de gosto mesmo. IPA não é um determinante de gênero, dã.

O que pega é a cena: não é só uma observação, nem um elogio, é uma quase tristeza do macho hophead. Calma, cara.

Para você, que ainda se choca com mulheres lupuladas, vai de 60 Minute IPA, da Dogfish Head — uma das minhas primeiras memórias cervejeiras, tomada sem qualquer conhecimento e amor ao primeiro gole.

(Crédito: Pexels)

"Posso te ensinar/te ensinei a gostar de…"

Uma coisa muito pentelha de estudar qualquer coisa num universo majoritariamente masculino é que você ganha uma legião de professores.

Muitos realmente com boa vontade e muito conhecimento, outros…bem, não dá pra contar as inúmeras atitudes que a gente engole sem nem perceber o quanto servem pra alimentar ego ferido — e esconder um feministo.

E não tem nada mais mala que um "macho-pseudo-mentor" que acha que te iniciou na "seita cervejeira". Desapegue dessa pupila que ela só reconhece como mestre quando a recíproca é verdadeira.

Para estes, uma Weihenstephaner Hefe-Weiss, provada ao lado de amigos que "me apresentaram as amarguinhas" nos idos de 2010.

"Minha namorada até me acompanha nas cervejas"

Ao lado de todo cervejeiro hétero comprometido, há, muitas vezes, uma cervejeira. Sair do seu redondo umbiguinho e reconhecê-la não como a figura paciente que se obriga a tomar as bebidas diferentonas, mas como uma companheira de provas é essencial.

Além de já ter sido essa namorada em questão — engraçado lembrar das baboseiras cervejeiras que saíam do círculo de entendidões, inclusive –, não são poucas as mensagens em redes sociais que recebo com aquele caboclo super orgulhoso de ter uma mulher que ATÉ bebe as cervejas artesanais! UIA!

Para amigos iludidos e amigas pacientes, uma Saison À Trois, parceria da Invicta e da 2 Cabeças, e uma das cervejas que me fez pensar "caramba, quero aprender esse trem aí".

(Crédito: Pexels)

"(Coisas inaudíveis de bêbado)"

Talvez as ofensas cervejeiras mais cabeludas foram as que eu nem consegui ouvir, em festivais cervejeiros, num bar mais cheio, num show ou festa.

Não sabe beber? Passa vexame? Acha que mulher bebendo é sinal verde para pegar o braço? Volte mil casas, cervejeiro.

Para vocês, um copinho de água, uma Coca-Cola e distância.

Caras assustadas falam mais que mil palavras

Nem sempre o machismo vem em frases, mas em atitudes, e até silêncio.

Apesar do tempo que passou e da malícia que a gente ganha nessa vida, não tem como disfarçar que se sentir "diferente" num grupo é constrangedor e, amigos, ser mulher numa degustação pode ser bem solitário.

Foi assim na primeira degustação que frequentei, na abertura do bar da Brewdog em São Paulo, em 2013, e só vi uma mesa de marmanjos meio chocados, meio putos — e mudos — com uma menina empolgadíssima ao provar sabores com os quais ainda não tava familiarizada. (Para relembrar e brindar a parte boa do evento, uma cerveja que nunca mais tomarei na vida: Brewdog Abstrakt AB:14).

Não foi lá muito diferente na primeira confraria da qual participei (única mulher por lá): parecia uma batalha daquelas de rima… só que a disputa era por quem encontrava mais defeitos, mais bebidas raras e adjetivos para as Flanders Red Ale da mesa. Quem fala de competição feminina, nunca viu um grupo de cervejeiros. Para esse momento, a melhor da noite: Cuvée des Jacobins Rouge.

(Crédito: Pexels)

Também rolou numa reunião (bate-papo? Nunca entendi o que rolou esse dia) com cervejaria grande para trocar ideias sobre mulheres na produção de cervejas, maior participação delas num concurso que virou reality e tudo mais. Eu, a mulher da sala, quase não falei. Quando falei, fui interrompida. Quando consegui concluir um pensamento, fui questionada. Para rebater esse momento estranho, uma memória boa: a Berliner Weisse da Anne Galdino para Eisenbahn.

Como estas três situações, posso citar mais muitas. Mas paro aqui com o puxão de orelha para vocês, homens, meninos, garotos, como preferirem.

Quando o machismo "somos nozes"

Vez ou outra, coloco minha "carteirinha feminista" para pensar e não são poucas as vezes em que explode aquele machismo (ou a reprodução dele, como dizem) entre nós, mulheres.

Partir do princípio que toda mulher está numa limitada caixinha de obrigações e direitos como feminista me incomoda. Alardear por aí que "mulher é o que ela quiser" desde que se encaixe nos moldes de militância, para mim, não vale.

(Crédito: Pexels)

Não me apontem quem apoiar, nem me condenem quando num mar de "somos todes…." me calo. Confundo o feminino com o complexo e com potencial de ganhar o mundo, mas não me agarro à inocência de achar que, por sermos mulheres, não devemos nos questionar e que o gesto de sororidade é nos colocarmos no patamar de deusas (ou fadas sensatas, como queiram). É humano não ser perfeito, pronto, "incritivável", unânime.

É machista colocar uma gostosona na propaganda ou um rótulo com uma viking sexy? Para mim, é igualmente ofensivo e antiquado colocar o corpo pelo copo, sexualizar a cerveja sob o pretexto de liberdade. A gente superou o marketing da loira gelada para cair no da garrafa entre os seios por likes? O público atraído por um e por outro é diferente? Penso que não.

O temor aqui é termos lutado tanto e diariamente para quebrar paradigmas e fugir de padrões, mas acabarmos estabelecendo outros, tão limitantes e nocivos quanto os que já nos foram impostos por tanto tempo.

Para respirar fundo e dividir estas dúvidas, a minha cerveja mais amada na vida – cuja mestre-cervejeira é Anne-Françoise Pypaert: Orval, você vai nos redimir.

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Sobre a autora

Juliana Simon é jornalista do UOL, sommelière de cervejas, mestre em estilos e especialista em harmonização pelo Instituto da Cerveja Brasil.

Sobre o blog

O Siga o Copo é espaço para dicas, novidades e reportagens para quem já adora ou quer saber mais sobre o universo cervejeiro e de mais bebidas.